Gosto muito de Ivaldo Bertazzo. Ainda não fiz sua escola (que adio há anos) por falta de tempo e como já aconteceu, com tempo mas sem dinheiro no momento. Acompanho seu trabalho há muito tempo, seja assistindo seus espectáculos, participando de aulas abertas, palestra, e através de seus livros.
Bertazzo estará aqui no Rio. Bacana. E tô colocando abaixo uma pequena entrevista, penso que seja interessante mesmo para quem não trabalhe com o corpo. E informações sobre seu espetáculo.
" No novo espetáculo do coreógrafo Ivaldo Bertazzo, o protagonista é um monge, grande estudioso de filosofia. A certa altura, ele conclui, para delírio da plateia: “Me sinto iluminado intelectualmente. Mas há um joanete me rasgando”.
A desconexão entre corpo e intelecto é um dos temas de Corpo Vivo - Carrossel das Espécies, o espetáculo que chega ao Rio de Janeiro de 27 a 30 de junho, no Teatro Tom Jobim, após passar por diferentes cidades do Brasil. No palco, 19 bailarinos, todos jovens da periferia, dividem a cena com o ator Rubens Caribé – que interpreta o tal monge.
Enquanto isso, a mezzo soprano Regina Elena Mesquita dá voz a uma mãe, uma égua e uma camareira, num repertório musical insólito, que mescla Nino Rota, uma canção iídiche, The Carpenters e canções regionais brasileiras.
Os movimentos do mundo animal são o mote central para essa abordagem do desenvolvimento humano que marca a coreografia. Afinal, todos já fomos como peixes ou como répteis, explica Betazzo, nessa entrevista. O coreógrafo, cujo método é um dos mais badalados do Brasil – e isso há décadas -, já deu aulas para celebridades tão diversas quanto a atriz Denise Fraga e a ex-primeira-dama Ruth Cardoso.
Continua oferecendo cursos e oficinas de reeducação corporal em sua academia, em São Paulo. Mas, desde o fim da década de 90, tem uma menina dos olhos: o projeto educacional com os jovens da periferia, que começou no Rio de Janeiro, na Maré.
Em sua visita à cidade, Bertazzo lança ainda o livro Corpo Vivo – Reeducação do Movimento (o primeiro de uma série de três, das Edições Sesc-SP). Depois da temporada no Teatro Tom Jobim, Corpo vivo passará por municípios do interior, como Campos (dias 16, 20h, e 17 de julho) e Cabo Frio (19 e 20 de julho ).
Cultura.rj: Os movimentos do mundo animal são o mote para o espetáculo Corpo vivo. Como foi a inspiração para levá-los ao palco?
Ivaldo Bertazzo: O ser humano é uma síntese de todas as outras espécies, em termos mecânicos. Ou seja: de movimentação. Nós, os seres humanos, em nosso desenvolvimento motor passamos por muitas fases. Fomos peixe na barriga de nossas mães, onde havia um campo de flutuação, e tivemos a forma arredondada de um golfinho. Ao nascer, passamos pela marcha réptil: o bebê rasteja no chão. Em seguida vem a fase quadrúpede, onde o homem desenvolve sua elevação contra a gravidade, ganhando força nos abdominais. O deslocamento humano é flutuante, horizontal. É onde somos pássaros. Isso é poético. Não dá para falar mal do homem: ele tem seus limites, mas estes foram necessários para que tivesse também um cérebro maior, para que ganhasse sua habilidade manual. Ele inclusive consegue a mímica. E, por meio dela, interpreta outras espécies. O homem é soberano, e é importante mostrarmos isso. O nosso espetáculo busca a poesia dessa condição. É o sonho, o encantamento, a patologia, o canto, a interpretação. A gente brinca com essa situação tão densa que é lutar com a gravidade, em vários sentidos. A gente se achata diariamente, e nos ensinam muito pouco sobre como nos sustentarmos no espaço. O ideal seria que ouvíssemos mais, desde a infância, como nos organizar no espaço. Mas, mesmo com tanta tecnologia e aparelhos maravilhosos, o conhecimento ainda é pouco.
Cultura.rj: O espetáculo é chamado de 'interativo'. Por quê? É uma forma de chamar atenção para esse desconhecimento?
Bertazzo: O quadro que abre o espetáculo são monges dançando. Quando acaba essa sequência, o monge protagonista afirma: tive tudo para conseguir a iluminação espiritual, mas estou com joanete me rasgando. Num outro quadro, um personagem está se barbeando no banheiro quando entra uma égua, que fala com ele: ‘Não entendo por que você faz a barba’. Então eu entro e distribuo um aparelho, uma espécie de escovinha, para o público escovar o rosto, e digo que não é só cavalo quem precisa ser escovado. Todo mundo se escova e morre de rir. Temos de ser lúdicos diante desse achatamento físico, sabe? Há a depressão que acompanha isso. Envelhecer não é fácil, nós passamos por perda de elasticidade e vigor, é necessário um psiquismo muito maduro.
Cultura.rj: Envelhecer está mais difícil nos tempos atuais, que celebram cada vez mais a juventude?
Bertazzo: Sim, os tempos atuais prezam a beleza da juventude. E tudo o que acontece com o corpo é visto de forma mais acelerada. A trajetória de atletas e bailarinos acaba mais cedo; os recordes são batidos mais rápido. A juventude é preservada desesperadamente. Mas o que encontramos mais para a frente é um cérebro desejando um corpo que o acompanhe, quando este já está extremamente gasto. Não é fácil o trabalho intelectual. Você aí sentada escrevendo luta para se suspender, para não se achatar, não fazer hérnia de disco. Seu cérebro está verdadeiramente acompanhando o envelhecimento, mas o corpo apresenta dores e dificuldades de forma muito mais precoce. Isso é muito paradoxal. Não se ensina na escola como preservar a sua estrutura humana, mecânica. Muita gente acha que essa preservação está ligada só a fazer massa muscular. Mas a habilidade humana é muito mais preciosa que isso: há ginásticas como cozinhar, escrever, cantar. Por isso também o espetáculo busca ser onírico, encantador, e cheio de humor. Não pode ser sofrido: temos que dar risada, ter jogo de cintura diante das dificuldades.
Cultura.rj: A sua companhia de dança conta com a participação de jovens de comunidades periféricas, num projeto já muito elogiado. É verdade que o começo de tudo foi na Maré, aqui no Rio?
Bertazzo: Sim, começou na Maré. Eu queria trabalhar no Rio de Janeiro e, no final dos anos 90, pedi à Petrobras, que me apoiava, a indicação de algum grupo que pudesse me ajudar. Me indicaram o Ceasm [Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré] e começamos o trabalho. Tenho uma relação muito forte com a Maré. Eu não conhecia o corpo do adolescente carioca, que é muito interessante, e que tem interferências culturais diferentes do paulista.
Cultura.rj: Quais?
Bertazzo: O corpo do carioca é mais ágil que o corpo do paulista. Existe uma locomoção mais fácil. As periferias são mais próximas no Rio, o que inclui esse jovem na cidade. Não estou dizendo que não há problemas sociais graves, claro. O importante é criar experiências que mostrem que o jovem da periferia não deve ficar preso a um único tipo de linguagem. Estigmatizado, como se diz, a ser um funkeiro sempre. Isso já começou a mudar, aliás. O jovem da periferia carioca aprende violino. E esse corpo jovem carioca, bonito e agressivo, no bom sentido, não precisa perder a sua identidade, pode continuar a ser um jovem corpo carioca em sua plenitude. Eu costumo dizer que meu mestre é o Carlinhos Brown e o seu Candeal, que rapidamente transforma jovens em músicos e em bandas. Porque o jovem não pode ficar paralisado pelo trabalho social: temos que incentivá-los a desenvolver componentes vocacionais, a tocar, interpretar, dançar. Todos os jovens que participam do meu projeto são também professores em suas comunidades. Eu digo a eles: há períodos de safra baixa, em que não há trabalho. Mesmo eu, que vim de uma classe privilegiada, tive que tomar muito cuidado para não ser exclusivamente um bailarino.
Cultura.rj: Quais os seus planos para o futuro?
Bertazzo: Quero fazer um espetáculo com a atriz Vera Holtz, estou tentando conquistá-la. Vou lançar mais dois volumes de meu livro, o próximo até o fim do ano. Mas meu grande sonho é desenvolver cursos de formação para professores de escolas públicas. Quero ajudá-los a se concentrarem mais, a serem menos agressivos, a terem mais capacidade de reflexão. O jovem não sabe mais estudar porque o desconforto em seu corpo é muito grande, e os professores devem poder ajudar nisso".